sexta-feira, 29 de julho de 2011

A trabalhosa tarefa de ser pai de moças



Ser pai de moças dá um certo trabalho. Não físico, que nisso ninguém bate os meninos. Falo de um trabalho de atenção, de ficar ligado. Quando estão muito pequenas, se um pai sai com as meninas sem a mãe, surgem sempre problemas práticos, dos quais o mais dramático é o banheiro. Três alternativas se frustram nesse momento: o pai não pode entrar no toalete feminino, não convém que elas entrem sozinhas, no dos homens não podem entrar. para os meninos acompanhados de mães, banheiro não é problema: elas entram com eles. Pequeninos, as outras mulheres não ligam, e eles se comportam, senão as mães torcem-lhes o pepino. O recurso dos pais é muitas vezes pedir a uma bondosa senhora que acompanhe as meninas, que supervisione tudo o que se faz num toalete, supervisão que nem sempre é agradável, seja para a senhora, seja para as meninas. Pior se forem tímidas.
         Quando elas estão maiorzinhas, para cima de oito anos, há que pôr um olho nos meninos, durante as festinhas. Não queacontecer alguma coisa, mas as mães recomendam, cobram. Crianças somem, sabe-se o que estão fazendo, afligem-se as mães. Seja o que façam, não pode fazer mal, mas mãe é mãe. Então, para um pai de meninas, festinha de criança não é beber cerveja com o cunhado e disputar a cotoveladas a bandeja de brigadeiros. É preciso ficar atento, ter uma resposta quando a mãe pergunta: cadê a Fulaninha? Se é menino, deixam pra , é até bom que sumam de vez em quando e tentem alguma brincadeira com as Fulaninhas dos outros. Bom para não virar bicha. Mãe é mãe.
         Quando crescem mais um pouquinho, doze anos, as mães, sabe-se se por ciúmes, começam a grilar os pais com a atenção que eles dão às meninas. Começam a achar excessiva. Na reunião de pais da escola ouviram que a “figura paterna” tem de ficar atenta a essa “sedução inconsciente”. O perigo é as meninas não transferirem para os meninos o encanto que sentem pelo pai maravilhoso, até então único representante do sexo masculino na vida delas. Complicado, não? Concorde ou não, o pai fica atento, o grilo se instala.
         Depois vêm os ciúmes dele. As meninas afinal se libertaram do pai sedutor e caíram nos braços talvez daqueles mesmos meninos que a mãe mandou vigiar nas festinhas. Agora ela acha que pode. Mãe é mãe. Agora ele acha que não pode, ainda novas demais. Pai é pai. Ele acaba se acostumando e passa a conviver com a possibilidade de se tornar avô.
         O trabalho a mais de ser pai de moças não termina , porque chega a hora da inserção delas no mercado profissional. Como se sabe, mulher ganha menos do que homem, tem menos oportunidades, tem mais assédio. então vemos como isso é injusto. Fomos nós, homens, que criamos essa distorção, mas o mundo era outro, elas faziam trabalhosmenores”, “auxiliares”, não os mesmos que nós. Agora fazem. Cabe a elas mudar isso e a nós, pais de moças, apoiar. É, dá trabalho.
         Mais aqui, menos ali, passei por essas fases. Às vezes, coisas divertidas aconteceram nesse percurso. Como aquela vez no cinema, eu e elas, minhas filhas. Duas lindas mocinhas, sedutoras, perfumadas. Sentaram-se nas duas únicas poltronas vagas, na última fila, luzes apagadas, trailer rolando. Mais atrás, havia umas cadeiras, numa espécie de nicho, e foi que me sentei. As balas ficaram no meu bolso, e tinha de me levantar, dar uma passo para chegar até elas e oferecer-lhes uma bala. Ofereci uma vez, não quiseram. Voltei, chupei uma, começou o filme, e passado um tempinho levantei-me para oferecer-lhes de novo uma bala. Não queriam, insisti: “Aceitem, está uma delícia!” Não quiseram, voltei para o meu lugar. O rapaz que estava ao lado delas disse alguma coisa, uma respondeu, depois cochicharam uma com a outra e caíram na risada. Volta e meia caíam na risada abafada. Riram ainda mais quando de novo lhes ofereci uma bala. Foi a última vez. Aquela falta de modos acabou atrapalhando meu filme. Terminado, luzes acesas, fui cobrar a razão de tanto riso. Esperaram o rapaz afastar-se e de novo rindo contaram:
         Quando você ofereceu bala a segunda vez, o rapaz do nosso lado, todo herói, perguntou se “aquele senhor  estava nos incomodando.

ANGELO, Ivan. In: O comprador de aventuras e outras crônicas. São Paulo, Ática, 2000. p. 63-5. (Para Gostar de Ler, 28).

quinta-feira, 28 de julho de 2011

A meu amigo, o Piracicaba

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Xará, a gente não deve nunca cuspir num rio, por menor que seja esse rio, porque ninguém pode dizer dessa água não beberei. Um rio tem curvas e voltas. O rio é como a vida: mistérios, sombras, grotas, reflexos de prata, remansos e correntezas. O rio, por menor que seja, é uma lição de descobertas. Na escola as professoras mandam decorar que um rio é um curso de água que corre para o mar. Mas um rio é muito mais que isso. Um rio está acima das noções de Geografia; é mais que um traço trêmulo no mapa, é mais mistério que um artefato hidráulico. Um rio são os pedregulhos, a barranca, os chorões, os galhos debruçados sobre o espelho, anteriores às pontes de concreto. Um rio são os olhos insones dos peixes irrequietos, o lodo frio, a loca dos cascudos, o remoinho, a corredeira, o réquiem dos defuntos afogados, a urina dos moleques, o olor da pele das mulheres, o agachar das lavadeiras, o itinerário dos barcos e o silêncio dos pescadores.
O rio é o patrimônio das pessoas simples, das cabritas e dos pássaros.
O rio é o grande monumento da cidade.
Xará, dize-me que rio tens, te direi quem és.
Teu rio é o horóscopo do teu futuro: claro, pardo ou escuro.
Teu rio mostra o que pensas das pessoas, o que fazes com as pessoas e às pessoas; se és um homem livre, bom, sensato, feliz ou se és apenas um homem que não tem sequer a alegria de um rio.
O cheiro do rio é teu atestado de antecedentes.
Xará, um rio pode ser o riso líquido das crianças ou as lágrimas secas dos velhos.
O rio é a fração ideal de teus sonhos; o brinquedo que restou à humanidade salva do incêndio, que a espada de fogo ateou no paraíso perdido entre o Tigre e o Eufrates. Xará, o rio é tua carteira de identidade, teu certificado de sanidade, teu comprovante de civilidade, teu erregê; registro de gente. Um rio é feito para ser amado, para correr e saltitar, para beijar as margens com volúpia. Um rio é feito para ser prestigiado, namorado, para ser mostrado aos turistas e aos de casa, com orgulho, assim:
— Olhe, veja como cuidamos deste tesouro, deste símbolo, destas raízes, desta cortina de névoa que à noite se levanta, deste véu de noiva que escorre da colina, desta fonte de luz e graça, desta bênção.
Veja como somos amigos do rio, como abrimos uma avenida na cidade para recebê-lo com alegria. E veja como o rio percorre, tranqüilo e terno, as doces horas das núpcias com a cidade.
grandes rios.
rios tão grandes que as pessoas devaneiam o outro lado do horizonte líquido.
Nesses rios grandes as crianças nascem botos e as mulheres engravidam em canoas de remos.
Esses rios disputam com o oceano; são restos do dilúvio.
Navegando nesses rios, o rei da terra não passa de traíra.
Mas os rios modestos, mesmo os riozinhos, também são importantes, e também nesses não se deve cuspir, xará.
Um ribeiro, um regato, um riacho, um ribeirão, um córrego, todos eles fazem o mar, onde ninguém distingue o grande do pequeno.
E essa igualdade é, talvez, a maior lição que os rios dão.
Não foi à toa, xará, e sim por sabedoria das coisas, que a Independência foi proclamada às margens de um rio (tão pequeno e raso que quase morre, por cuspirem nele).

(DIAFÉRIA, Lourenço. A morte sem colete. São Paulo: Moderna, 1986. p. 103)
Sedimentos e sujeira - rio Tietê - arredores do Parque Ecológico do Tietê - Núcleo Engenheiro Goulart, São Paulo, SP, Brasil



segunda-feira, 18 de julho de 2011

ANTENA LIGADA

        Troquei meu televisor em branco-e-preto por um televisor em cores com controle remoto, para facilitar a vida de meus filhos, que, agora, sabe como é, época de provas, estão se virando mais que pião na roda. Imaginem que um outro dia um professor teve a coragem de mandar meu filho gavião-da-fiel fazer um trabalho sobre o Sócrates.
         Fiquei uma arara.
         Em todo caso, apanhei a revista Placar e recomendei que o garoto consultasse os arquivos esportivos da Folha e do Jornal da Tarde. Não é por ser meu filho, mas o guri caprichou do primeiro ao quinto.
         Tirou zero.
         Puxa, assim também é demais. Resolvi levar um papo com o professor, ver se não era perseguição. O professor foi muito gentil, porém ninguém me tira da cabeça que é palmeirense disfarçado de são-paulino. Garantiu-me que havia ocorrido um equívoco. O Sócrates que ele queria é um craque da redonda que tomou cicuta. Essa é boa. Por que não avisou antes? Como é que vou adivinhar que o homem jogava dopado?
         Me manquei, mas o professor percebeu meu azedume. Disse que ia dar uma nova oportunidade, deixando cair a máscara alviverde, deu uma de periquito campineiro e pediu um trabalho completo sobre o Guarani.
         Deixa que eu chuto, falei a meu filho. Pode contar comigo na regra três. Eu mesmo cuido da pesquisa.
         Peguei a escalação completa do Guarani, botei o Neneca no gol, fiz a maior apologia do time da terra das andorinhas. Pra me cobrir e não deixar nenhum flanco desguarnecido, telefonei pro meu amigo Antônio Contente, que transa em assuntos culturais e conexos (como seja, a imprensa), e pedi por favor que me mandasse uma camisa autografada. Diretamente de Campinas e pelo malote.
         Não é pra falar, mas o trabalho escolar ficou um luxo.
         Sem falsa modéstia, estava esperando pro meu filho no mínimo aprovação cum laude e placa de prata, para não dizer medalha de honra ao mérito.
         Pois deu zebra.
         Começo a desconfiar que o tal professor me armou uma arapuca e entrei fácil, como um otário. O homem deve ser primo do Dicá. Sabem o que o mestre fez? Hem? Querem saber? Deu outro zero pro meu filho. O pior é que não devolveu a camisa oito autografada.
         Essa não deixei barato. Fui de peito aberto, às falas.
         Ilustreeu disse —, com o perdão da palavra, mas que diabo de safadeza vossa senhoria anda arrumando pro meu garoto gavião-da-fiel? Então eu perco tempo, consulto a história gloriosa da equipe campineira, faço a maior zorra com o time do Brinco de Princesa, e o garoto ganha então cartão vermelho?
— Foi o senhor quem fez a lição?
Fiquei meio sem jeito:
Bem, fazer não fiz. Dei uma orientação didática. Pai é para essas coisas...
Ele não se comoveu. Ao contrário, foi até rude:
— Se aceita um conselho, pare de dar palpite na lição de casa de seu filho. O senhor não conhece nada do Guarani.
Falar isso na minha cara! Tive de aguentar calado. Nunca soube que no diacho do time campineiro figurasse a dupla de área chamada Peri e Ceci. E com essa constante mudança de técnicos, como podia sacar que o técnico atual é o José de Alencar?
— Tá bemeu disse —, não vamos brigar por tão pouco. O professor pode dar outra colher de chá ao menino?
Deu. O professor quer agora os capítulos completos de um romance, por coincidência com o mesmo nome do time de Campinas: O Guarani. É qualquer coisa com índio sioux que de repente se obrigado a salvar a mulher biônica das águas da enchente. Deve ser telenovela em cores. Mas para complicar a vida do meu filho, o professor não revelou o horário. Porém desta vez ele não me ferra. Pela dica do enredo que deixou escapar, deve ser mais uma dessas sucessões de cenas de violência que a gente é obrigado a engolir todas as noites na televisão. Estou de antena ligadona, meu chapa.

Lourenço Diaféria. In: Para gostar de ler. São Paulo, Ática, 1981, v. 7
 
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