terça-feira, 6 de setembro de 2011

O risco da meia da moça - Ignácio de Loyola Brandão

Cedo ainda, pai e filha entraram na lanchonete deserta. O homem escolheu a mesa no canto, junto à janela. Magro, óculos de lentes espessas, parecia cansado. Indagou da menina:
O que você quer?
Chocolate.
E para comer?
Pão de queijo. E o senhor?
Acho que nada.
Enquanto ela comia com lentidão, o pai olhava atento, como que preocupado. Havia um breve brilho de alegria nos olhos dele, talvez contentamento por estar com ela. No entanto, não parecia muito à vontade. A manhã de maio era límpida, fresca.
— O que é vaidoso, pai?
— Onde você ouviu isso?
— A professora disse para um menino que ele fazia muita pose na classe, que era vaidoso. É coisa ruim?
— Depende.
— O que é depende?
O homem não respondeu. Seu olhar se tornou pensativo. Como explicar, em poucas palavras, ou em palavras simples, o significado de depende?
— É coisa boa, pai?
— Pode ser.
— Ou é ruim?
— Pode ser. Às vezes, uma pessoa quer brincar com a outra, carinhosamente, e diz: você é vaidoso. Ou então, faz ironia, para cutucar o outro, mexer. Se a pessoa é muito cheia de si, é vaidosa, não vai gostar.
— Pai, o que é ironia? E uma pessoa cheia de si?
O homem novamente não respondeu. No entanto, parecia contente com a curiosidade da filha. Ela tomou mais um pouco do chocolate, fazendo barulho com a boca.
Não faça isso, é feio. Coisa de gente mal-educada.
Sou bem-educada?
Ao menos, tenho tentado.
Ele viu que o pão de queijo tinha sido devorado. Talvez a menina quisesse outro. Virou-se um pouco, tirou umas moedas do bolso, contou.
Quer outro pão de queijo?
Posso?
Por que não?
Outro dia, na padaria, comi um pão na chapa e você não comeu nada, estava sem dinheiro. Você tem dinheiro, pai?
Pode comer outro. Sossegada.
Desta vez, ele pediu um pão de queijo com recheio, ela mordeu, o requeijão escorreu. Ela riu, os dois riram.
Surpresa, pai! Que delícia! Quer provar?
Os olhos dele indicavam que sim, ele disse não.
— Quando chove, a água não leva a cor das flores?
— O quê?
— Quem pinta o céu de azul?
— É o azul do ar.
— Por que o vidro é transparente?
— Vamos fazer uma lista das coisas que você quer saber e no sábado nos sentamos no Ibirapuera e resolvemos tudo.
A menina não prestou atenção, estava olhando uma mulher que tinha entrado, morena, muito bonita.
Viu a meia dela, pai?
Não. O que tem?
É moderna, tem um risco no meio, atrás. Você me compra uma?
No seu aniversário.
Vou ficar maravilhosa como aquela mulher?
Vai.
Por que não olha para ela, pai?
Já olhei. Uma mulher dessas é um sonho, filha.
Sonhos não acontecem?
Depende da gente.
Depende...o que é depende?
O pão de queijo se acabava, ela queria desfrutar ao máximo. Ao terminar, ficou olhando pela janela. O salão de festas da lanchonete estava bem à frente, todo colorido.
O que é aquilo?
Para festas de aniversário.
Vamos fazer a minha ali?
O seu aniversário demora.
Mas vamos fazer?
Ele pareceu indeciso entre dizer não e desiludir e dizer sim, ela esperar e ele não poder cumprir.
Depende...
Depende, quer dizer coisa ruim, não é?
Vou tentar tudo. Agora, vamos embora.
Eles se levantaram, o homem começou a apanhar a bandeja.
O que está fazendo pai?
Limpando a mesa, é costume.
Eles não têm empregados?
O homem não soube responder. Apanhou tudo e levou ao lixo, em cuja tampa estava escrito obrigado. A menina deu a mão ao homem, caminharam para a saída. Na calçada, ela se voltou para ele:
Não sabemos muita coisa, não é pai? Ou o senhor não gosta de responder perguntas?
Um dia saberemos.
Saberemos? E se a mulher olhasse para você, pai?
O homem não respondeu, mas sabia que carregaria dentro dele, quem sabe para sempre, o belo rosto da mulher, já que não tinha visto o risco da meia.

sábado, 3 de setembro de 2011

Peladas - Armando Nogueira Jr.

            Esta pracinha sem aquela pelada virou uma chatice: agora, é uma babá que passa, empurrando, sem afeto, um carrinho de bebê, é um par de velhos que troca silêncios num banco sem encosto.
            E, no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho: “eu jogo na linha! eu sou o Lula!; no gol, eu não jogo, tô com o joelho ralado de ontem; vou ficar aqui atrás: entrou aqui, sabe”. Uma gritaria, todo mundo se escalando, todo mundo querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de uma suada vaquinha.
            Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como está; o outro joga sem camisa.
            reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser muito compreensivo que dança conforme a música: se está no Maracanã, numa decisão de título, ela rola e quica com um ar dramático, mantendo sempre a mesma pose adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de um gandula.
            Em compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca: ela corre para , corre para , quica no meio-fio, para de estalo no canteiro, lambe a canela de um, deixa-se espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela calçada. Parece um bichinho.
            Aqui, nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola. Afinal, trata-se de uma bola profissional, uma número cinco, cheia de carimbos ilustresCopa Rio-Oficial”, “FIFA – Especial”. Uma bola assim, toda de branco, coberta de condecorações por todos os gomos (gomos hexagonais!) jamais seria barrada em recepção do Itamarati.
            No entanto, está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo, disputada, maltratada até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha.
            Racha é assim mesmo: tem bico, mas tem também sem-pulo de craque como aquele do Tona, que empatou a pelada e que lava a alma de qualquer bola. Uma pintura.
            Nova saída.
            Entra na praça batendo palmas como quem enxota galinha no quintal. É um velho com cara de guarda-livros que, sem pedir licença, invade o universo infantil de uma pelada e vai expulsando todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o mundo está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas.
            O espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um canivete e dá-lhe a primeira espetada. No segundo golpe, a bola começa a sangrar.
            Em cada gomo o coração de uma criança.

ARMANDO NOGUEIRA. Bola na rede. Rio de Janeiro: José Olympio, s. d..
 
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