quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A volta, Luis Fernando Verissimo


Da janela do trem o homem avista a velha cidadezinha que o viu nascer. Seus olhos se enchem de lágrimas. Trinta anos. Desce na estação – a mesma do seu tempo, não mudou nada – e respira fundo. Até o cheiro é o mesmo! Cheiro de mato e poeira. não tem mais cheiro de carvão porque o trem agora é elétrico. E o chefe da estação, será possível? Ainda é o mesmo. Fora a careca, os bigodes brancos, as rugas e o corpo encurvado pela idade, não mudou nada.
            O homem não precisa perguntar como se chega ao centro da cidade. Vai a , guiando-se por suas lembranças. O centro continua como era. A praça. A igreja. A prefeitura. Até o vendedor de bilhetes na frente do Clube Comercial parece o mesmo.
            Você não tinha um cachorro?
  O Cusca? Morreu, ih, faz vinte anos.
O homem sabe que subindo a Rua Quinze vai dar num cinema. O Elite. Sobe a Rua Quinze. O cinema ainda existe. Mas mudou de nome. Agora é o Rex. Do lado tem uma confeitaria. Ah, os doces da infância... Ele entra na confeitaria. Tudo igual. Fora o balcão de fórmica, tudo igual. Ou muito se engana ou o dono ainda é o mesmo.
Seu Adolfo, certo?
— Lupércio.
— Errei por pouco. Estou procurando a casa onde nasci. Sei que ficava ao lado de uma farmácia.
Qual delas, a Progresso, a Tem Tudo ou a Moderna?
Qual é a mais antiga?
— A Moderna.
             Então é essa.
— Fica na Rua Voluntários da Pátria.
Claro. A velha Voluntários. Sua casa está intacta. Ele sente vontade de chorar. A cor era outra. Tinham mudado a porta e provavelmente emparedado uma das janelas. Mas não havia dúvida, era a casa da sua infância. Bateu na porta. A mulher que abriu lhe parecia vagamente familiar. Seria...
Titia?
— Puluca!
Bem, meu nome é...
Todos chamavam você de Puluca. Entre.
Ela lhe serviu licor. Perguntou por parentes que ele não conhecia. Ele perguntou por parentes de que ela não se lembrava. Conversaram até escurecer. Então ele se levantou e disse que precisava ir embora. Não podia, infelizmente, demorar-se em Riachinho. viera matar a saudade. A tia parecia intrigada.
— Riachinho, Puluca?
— É, por quê?
Você vai para Riachinho?
Ele não entendeu.
Eu estou em Riachinho.
Não, não. Riachinho é a próxima parada do trem. Você está em Coronel Assis.
Então eu desci na estação errada!
Durante alguns minutos os dois ficaram se olhando em silêncio. Finalmente a velha pergunta:
Como é mesmo o seu nome?
Mas ele estava na rua, atordoado. E agora? Não sabia como voltar para a estação, naquela cidade estranha.

Luis Fernando Veríssimo. A mulher do Silva.
Porto Alegre. L&PM.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Rita, Rubem Braga


No meio da noite despertei sonhando com minha filha Rita. Eu a via nitidamente, na graça de seus cinco anos.
            Seus cabelos castanhos – a fita azul – o nariz reto, correto, os olhos de água, o riso fino, engraçado, brusco...
            Depois um instante de seriedade; minha filha Rita encarando a vida sem medo, mas séria, com dignidade.
            Rita ouvindo música; vendo campos, mares, montanhas; ouvindo de seu pai o pouco, o nada que ele sabe das coisas, mas pegando dele seu jeito de amar – sério, quieto, devagar.
            Eu lhe traria cajus amarelos e vermelhos, seus olhos brilhariam de prazer. Eu lhe ensinaria a palavra cica, e também a amar os bichos tristes, a anta e a pequena cutia; e o córrego; e a nuvem tangida pela viração.
            Minha filha Rita em meu sonho me sorria – com pena desse seu pai, que nunca a teve.

Janeiro, 1955

200 crônicas escolhidas. 20ª ed. - Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 308

O Pavão, Rubem Braga


Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas dágua em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.

Novembro, 1958

200 crônicas escolhidas. 20ª ed. - Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 363

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Galochas, Fernando Sabino

            E como ontem estivesse chovendo, tive a infeliz idéia, ao sair à rua, de calçar um velho par de galochas. me desacostumara delas, e me sentia a carregar nos pés algo pesado, viscoso e desagradável, dando patadas no chão como um escafandrista de asfalto. Ainda assim, não deixaram de ser, em tempos de chuvas, a única proteção efetiva para o sapato.
            Mas quem disse que chovia? No centro da cidade um sol radioso varava as nuvens e caía sobre a rua, enchendo tudo de luz, fazendo evaporar as últimas poças de água que ainda pudessem justificar minhas galochas. E elas de súbito se tornaram para mim tão anacrônicas, como se eu estivesse de fraque, cartola e gravata plastrom.

            “É que não se usa galochamais de vinte anos”, advertia-me uma irônica voz interior. Desconsolado, parei e olhei em volta. Naquela festa de sol, em plena Esplanada do Castelo, quem é que iria estar de galocha, além de mim? Vi passar a meu lado os sapatos brancos de um homem pernosticamente vestido de branco. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, pensei. Saíra depois da chuva, certamente. Veio-me a desagradável impressão de que todo mundo reparava nas minhas galochas.
            Galochasmas que coisa antiga, meu Deus do céu! – descobri de súbito: como não pensar nisso ao calçá-las? Artefatos de borracha – e concluí idiotamente: hoje em dia tudo é de matéria plástica, ninguém fala mais em capa de  borracha – existirão galochas de plástico? Como fazem os pelintras de hoje para não molhar os pés nos dias de chuva?
No restaurante, onde entrei arrastando os cascos como um dromedário, resolvi me ver livre das galochas. Depois de acomodar-me, descalcei-as, procurando não chamar a atenção dos outros fregueses, deixei-as debaixo da mesa.
            Ao sair, porém, o garçom, solícito, me advertiu em voz alta, do fundo:
            — O senhor está esquecendo suas galochas!
            Humilhado, voltei para apanhá-las, e sem ligar mais para nada, saí com elas na mão.
            Agora estão , abandonadas numa das gavetas de minha mesa de trabalho, despojos de um mundo extinto. Um dia me serão úteis, quando eu for, como diz o poeta, suficientemente velho para merecê-las.
Quadrante 2. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963, p. 236-238.
 
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